quarta-feira, 29 de junho de 2016

cúmplices

     Eram 10h47 de uma terça-feira, estávamos voltando à escola. as crianças da EMEI haviam gostado das brincadeiras hoje, algumas até me deram seus desenhos.
   Dentro da perua, meus colegas do projeto gritavam, cantavam e conversavam. normalmente eu estaria ali no meio, mas naquele dia eu só conseguia pensar na crônica que eu tinha que escrever pra aula de leituras sobre os refugiados e que eu os conheceria à noite.
     O dia passou, como geralmente passava; aula de matemática parecendo uma eternidade, correndo na aula de educação física, lendo na aula de português... até que finalmente 18h15, bateu o sinal e eu sai da sala. guardei meus materiais, passei no armário e dei tchau pra todo mundo, o mais rápido possível.
     Desci até a sala do Instituto, algumas outras representantes dos outros projetos já estavam lá, mas os refugiados não. arrumamos e discutimos alguns assuntos só entre a gente, e enfim, eles chegaram!
     Eram irmãos, um homem e uma mulher. eu que sou baixinha, ou ele era extremamente alto. pele negra, e com um olhar certeiro. vestia uma calça jeans, e um casaco bem grande por causa do frio. quando ele tirou o casaco, pude ver que ele estava com uma blusa do corinthians, que mais tarde ele nos contou que havia ganhado, e só usava porque ainda não tinha tantas roupas aqui, mas que não era torcedor não, e tomava cuidado para não apanhar na rua por causa de supostamente pensarem que ele é corinthiano.
    Ela usava uma saia jeans comprida e uma blusa estampada, com não muito mais do que 1,60. negra, com milhões de trancinhas e dreads no cabelo, com alguns penduricalhos coloridos que tinham as cores da Jamaica. mais tímida do que seu irmão e ainda não falava tão bem o português. descobri que ela era cozinheira quando ainda morava na África.
     Os dois eram bem simpáticos, porém ainda meio assustados com a situação. aos poucos, fomos conversando, perguntando e ele nos contava um pouco da cultura deles, de como são tratados aqui, do racismo que sofrem, do que é estar refugiado, e do que esperavam do projeto que iríamos desenvolver com eles.
    Sabe quando alguém te conta um problema, e enquanto fala, as lágrimas caem, uma a uma, e escorrem lentamente pelo rosto da outra pessoa, e isso causa uma dor pra você só de olhar? então, Jean nem chorou, mas sua voz nos transmitia tristeza, ele contava e nós sentíamos saudade alheia por seu país, por seus pais, sua família, por sua cultura.
     Ele falava, e a cada segundo eu concordava mais com Renato Russo e pensava: “Vamos celebrar a estupidez humana!”. eu me envergonhava de fazer parte de uma sociedade como a minha.
    Em meio aos pensamentos, sempre voltava a crônica que eu teria de escrever sobre refugiados e o quanto eu queria incluir aquilo tudo nela. mas eu não sabia como. até que eu vi uma cena.
     Eu vi; com meus próprios olhos. um olhar trocado que se transformou em sorriso. os dois irmãos, cresceram juntos, amadureceram, brincaram, choraram, e viveram juntos. agora estavam ali, dentro de uma escola, contando sua história triste a meros adolescentes.
     Até que se olharam e sorriram, era um olhar cúmplice; simples; não mais tão ingênuo, mas que transmitia dor. um olhar de quem passou por tantas coisas juntos e agora... haviam sido forçados a saírem de seu país. 
assim eu quereria a minha crônica, que fosse cúmplice, simples, e não mais tão ingênua, assim como aquele olhar.


inspiração: "A Última Crônica", Fernando Sabino