Eram 10h47 de uma
terça-feira, estávamos voltando à escola. as crianças da EMEI haviam gostado
das brincadeiras hoje, algumas até me deram seus desenhos.
Dentro da perua, meus colegas do projeto gritavam,
cantavam e conversavam. normalmente eu estaria ali no meio, mas naquele dia eu
só conseguia pensar na crônica que eu tinha que escrever pra aula de leituras
sobre os refugiados e que eu os conheceria à noite.
O dia passou, como geralmente passava; aula de matemática
parecendo uma eternidade, correndo na aula de educação física, lendo na aula de
português... até que finalmente 18h15, bateu o sinal e eu sai da sala. guardei
meus materiais, passei no armário e dei tchau pra todo mundo, o mais rápido
possível.
Desci até a sala do Instituto, algumas outras
representantes dos outros projetos já estavam lá, mas os refugiados não. arrumamos e discutimos alguns assuntos só entre a gente, e enfim, eles
chegaram!
Eram irmãos, um homem e uma mulher. eu que sou baixinha,
ou ele era extremamente alto. pele negra, e com um olhar certeiro. vestia uma
calça jeans, e um casaco bem grande por causa do frio. quando ele tirou o
casaco, pude ver que ele estava com uma blusa do corinthians, que mais tarde
ele nos contou que havia ganhado, e só usava porque ainda não tinha tantas
roupas aqui, mas que não era torcedor não, e tomava cuidado para não apanhar na
rua por causa de supostamente pensarem que ele é corinthiano.
Ela usava uma saia jeans comprida e uma blusa estampada,
com não muito mais do que 1,60. negra, com milhões de trancinhas e dreads no
cabelo, com alguns penduricalhos coloridos que tinham as cores da Jamaica. mais
tímida do que seu irmão e ainda não falava tão bem o português. descobri que
ela era cozinheira quando ainda morava na África.
Os dois eram bem simpáticos, porém ainda meio assustados
com a situação. aos poucos, fomos conversando, perguntando e ele nos contava um
pouco da cultura deles, de como são tratados aqui, do racismo que sofrem, do
que é estar refugiado, e do que esperavam do projeto que iríamos desenvolver
com eles.
Sabe quando alguém te conta um problema, e enquanto fala,
as lágrimas caem, uma a uma, e escorrem lentamente pelo rosto da outra pessoa,
e isso causa uma dor pra você só de olhar? então, Jean nem chorou, mas sua voz
nos transmitia tristeza, ele contava e nós sentíamos saudade alheia por seu
país, por seus pais, sua família, por sua cultura.
Ele falava, e a cada segundo eu concordava mais com
Renato Russo e pensava: “Vamos celebrar a
estupidez humana!”. eu me envergonhava de fazer parte de uma sociedade como
a minha.
Em meio aos pensamentos, sempre voltava a crônica que eu
teria de escrever sobre refugiados e o quanto eu queria incluir aquilo tudo
nela. mas eu não sabia como. até que eu vi uma cena.
Eu vi; com meus próprios olhos. um olhar trocado que se
transformou em sorriso. os dois irmãos, cresceram juntos, amadureceram, brincaram, choraram, e
viveram juntos. agora estavam ali, dentro de uma escola, contando sua história
triste a meros adolescentes.
Até que se olharam e sorriram, era um olhar cúmplice;
simples; não mais tão ingênuo, mas que transmitia dor. um olhar de quem passou
por tantas coisas juntos e agora... haviam sido forçados a saírem de seu país.
assim eu quereria a minha crônica, que fosse cúmplice,
simples, e não mais tão ingênua, assim como aquele olhar.
inspiração: "A Última Crônica", Fernando Sabino
inspiração: "A Última Crônica", Fernando Sabino